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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Manifestações: Um afrodisíaco.



Era junho de 2013 e as manifestações populares chamavam a atenção do país, levando vários jovens às ruas. No início, o motivo dos protestos eram simples centavos de aumento na passagem dos transportes públicos, mas conforme os protestos iam aumentando de tamanho o motivo foi se banalizando. Nos dois maiores protestos, a diversidade de pedidos, reclamações e contestações era tão grande, que quase não se lembrava de que meros centavos eram a causa de tudo.

Eu era um dos jovens nas ruas. Nunca tive convicções políticas sérias, mas acreditava na causa inicial, especialmente porque ganhava muito pouco e o custo das passagens pesavam legal no meu bolso. Resumindo: eu ia pra fazer número. E era fácil ir para as ruas, principalmente se você tinha amigos, como no meu caso . Enquanto corria tudo bem no protesto, era como se estivéssemos em uma festa: música, dança, azaração, desde que tivesse um pano de fundo politico, é claro... Era quase um carnaval - a diferença vinha do consumo moderado de álcool.

Uma pergunta que surgia constantemente entre mim e meus amigos era sobre os motivos que nos faziam sair de casa e ir pra rua. Lamentavelmente não havia motivação politica entre as 3 principais razões pra estarmos nas ruas, às vezes nem entre as 5(mas creio que não só não eramos os únicos, como provavelmente eramos a maioria nesse ponto). Dessa lista de motivos, haviam dois pontos que nunca saíram: Ver garotas, e Adrenalina. Para meus amigos solteiros, era uma ótima opção para se conhecer outras meninas - incrível como o fundo político ajudava a puxar assunto com uma menina. Mas para mim e os demais amigo compromissados, a adrenalina se tornou o motivo central, principalmente depois que os confrontos entre polícia e manifestantes radicais (os Black Block, ou BB) se tornou rotina nos protestos. Era um êxtase estranho que sentíamos, causado pela mistura de medo, emoção e a sensação de alívio quando, no final, chegávamos em casa vivos, inteiros e livres, com histórias pra contar pros outros no dia seguinte. 

Veio então o efeito colateral: minha namorada passou do medo à curiosidade pelas manifestações, e resolveu que iria comigo a partir de então. Descobri logo que ela era mais empolgada, mais politizada e mais viciada em adrenalina do que eu. Antes eu só avisava que iria pra rua. Agora era ela quem me fazia ir com ela sob ameaças de ir sozinha caso eu não fosse. E fazer o quê? Eu ia.


Foi então que descobri nas idas às manifestações algo mais forte que a adrenalina. Durante o primeiro protesto em que acompanhei minha garota e houve confronto, calhou dela ter a idéia (de onde ela tirou eu não sei... mas antes dela ir eu fazia igual) de ir ver a 'linha de frente' in loco - a batalha BB x PM. No primeiro instante achei que ela tinha enlouquecido; no segundo seguinte pensei que ela entraria pro BB. Aí vi que era na verdade a adrenalina: ela estava buscando uma dose. E eu segui, primeiro pensando que assim também teria a minha dose. Depois, obviamente, tinha mesmo que tomar conta da minha garota. 

A situação apertou: as granadas de gás lacrimogêneo desceram no meio de nós. Mal deu tempo de darmos distância, e eu percebi que ela estava sob efeito do gás pela primeira vez - eu já tinha me acostumado. Ela estava cega, chorosa e desnorteada entre as explosões de granadas de efeito moral e rojões. Sem querer ser tão dramático, ela não estava no meio da zona de tiro, mas quando você não está enxergando, a sensação é a de que você está no pior ponto possível. Ela estava em perigo - o segundo pensamento a vir na minha mente. O primeiro foi "f..." - e eu tinha que fazer o que tinha que fazer como namorado, eu acho: tirar ela de lá.

A tarefa não seria nem um pouco difícil se ela tivesse ficado parada, mas como ela resolveu sair por conta própria, cega, piorou: ela foi em direção aos beligerantes. Saí correndo atrás dela e quando percebi estávamos abraçados furando um bloqueio da linha defensiva do BB (eles se irritaram mas abriram logo passagem porque estávamos atrapalhando). Corri levando ela, ainda meio cega, pela mão por uns três quarteirões (a linha de frente sempre se deslocava rápido nos confrontos) até que pudemos finalmente parar para recuperar o fôlego.

Nesse breve descanso senti um êxtase inesperado. Eu já estava adrenado fazia uns minutos - na verdade pensei que iria infartar - e ao olhar pra minha namorada, também adrenada, a puxei e apertei a mim num abraço, quase instintivamente. De repente me senti excitado. Acho que sentir o cheiro de gás ainda no cabelo dela foi uma das causas. Apertei ela contra mim com mais força. Ela provavelmente sentiu a mesma coisa, pois respondeu do mesmo modo. Pelos cinco minutos seguintes estivemos agarrados nos beijando, cheirando o gás, o vinagre e a pólvora em nossos cabelos, alheios ao conflito que ocorria já praticamente na nossa frente. 

Deixei-a em casa com a sensação de que havíamos acabado de voltar de uma boa noite romântica. Enquanto eu voltava só para minha residência, ela foi enchendo a caixa de mensagens do meu celular com beijos e emoticons de um modo que ela não fazia desde os primeiros meses de nossa relação (já estávamos juntos faz mais de um ano). Eu cheguei em casa e antes de tomar banho ainda cheirava meus braços e mãos pra lembrar do cheiro dela. Mas após o banho, quando liguei pra ela, percebi que o efeito afrodisíaco que sentimos já havia passado. Lembrávamos do ocorrido com empolgação, mas que estava mais parecida com a ansiedade por que passam pessoas recém-viciadas, à espera de uma nova dose.

Nos dias seguintes ainda sentíamos um efeito romântico morno resultante das lembranças da manifestação. Quando olhava pra ela, menor e aparentemente mais frágil que eu, sentia um desejo instintivo de protege-la (ela no entanto já havia dado provas de que não precisava). Ela também dava mostras de ter gostado da proteção, embora custasse a admitir isso pra mim. Mas dava pra ver pelo modo como me abraçava nos dias seguintes. A manifestação havia nos dado um reboot emocional.

E ficamos apreensivos aguardando a próxima ida às ruas. Planejamos nossa ida e participação como se fossemos a um piquenique a dois. A alegria infantil com que fizemos essa idealização foi substituída, porém, logo que chegamos às ruas. De volta o medo, a apreensão frente ao desconhecido. E por instantes esquecemos das nossas segundas intenções ali. Subitamente, à nossa frente, as explosões. As mesmas de sempre, das granadas, dos rojões. E lá vamos nós, mãos dadas, atrás da nossa dose. E a mesma situação, os mesmos efeitos, as mesmas sensações, renovada paixão. E uma manifestação foi levando a outra.


Mas em uma delas a coisa toda saiu de controle. Era uma manifestação que tinha muito mais gente que as anteriores, o que provocou um alvoroço bem maior do que o que estávamos acostumados. As explosões, o corre-corre, o pânico, foi muito grande. E ficar juntos se tornou difícil. Acabamos nos separando no meio de uma avenida onde a maioria dos manifestantes se concentrara. Na tentativa de encontra-la, fiquei com um grupo que quase foi cercado pela PM por duas vezes. Fiquei aflito. Não havia sinal no celular, e o 3G (que estranho, não?) havia sumido na região. Sem opções, só me restou uma coisa a fazer: sair da área, sentar e esperar aquele caos passar.

Foram 15 minutos que mais pareceram 2 horas. As ruas estavam sujas de papéis, cartazes, papelão e vidros quebrados. Viaturas ainda corriam pela avenida de um ponto a outro, esporadicamente. Me sentei no meio fio e busquei meu celular. Sem carga, e eu ainda assustado pensando na minha garota. Tentava conter o panico e algumas lágrimas, embora no fundo soubesse que risco de verdade ela não corria. Mas a saudade misturada a tudo isso dificultava o raciocínio. Tanto que quando ela me chamou, do outro lado da avenida, achei que era alucinação causada pelo gás lacrimogêneo. Não. Era ela mesmo.

Corremos um de encontro ao outro. Nos abraçamos, nos beijamos, nos demoramos um pouquinho nisso. Ela estava com um cheiro forte de suor e gás. Disse que correu pra trás uns quatro quarteirões, até perder a noção de onde estava. Custou a regressar com medo de encontrar policiais, blocks ou qualquer coisa que indicasse que não estava segura ainda. E então começou a chorar, escondendo o rosto no meu peito. Não aguentei e soltei umas lágrimas também, e abracei, beijei, cherei o gás nos seus cabelos mais ainda.

Decidimos ir pra minha casa. Era a mais próxima e dava pra ir andando. O metrô tinha várias estações fechadas, e havia dado a louca nos onibus. Alguns motoristas, durante o grande estouro do protesto, largaram os onibus no meio das ruas e fugiram a pé. As linhas estavam irregulares em trajeto e horário. O caos de antes, menos assustador agora porque minha namorada segurava minha mão.   
   
Quase duas horas andando até chegar em casa. Meus pais haviam viajado. Estávamos sozinhos e exaustos. Caímos na cama do meu quarto e só tiramos as roupas porque o cheiro delas - pólvora, suor, gás, vinagre - agora estava insuportável. O desejo mútuo entre nós ainda estava alto - mais alto do que nunca - mas o cansaço estava igual. Nos olhamos deitados na cama. Ela ainda respirava pesado e os olhos ainda estava vermelhos do gás e do choro. Percebemos que ali podia ter sido a nossa última ida a uma manifestação, ao menos atrás de adrenalina e afrodisíaco. Dormimos abraçados, seminus, ainda com o cheiro forte de suor e gás na pele e nos cabelos. Aliviados por estarmos juntos de novo, como se tivessemos passado pelo risco de sermos separados para sempre.


Alguns meses depois estávamos de volta às ruas novamente...


Nino Srat



PS: O texto tem como homenagem uma série de fotos que tirei na manifestação de 16/01/2015, no Rio de Janeiro. Se alguém estiver numa dessas fotos e desejar ser retirado, entre em contato.






  

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