Em destaque:

No portão:

sábado, 30 de junho de 2012

A princesa e o Bárbaro:

  Esse texto soa mais como uma sessão com o psicólogo do que com um conto. Não lembro quando desapeguei de contos de fadas. Meninos perdem o interesse por eles muito cedo, e eu não devo ter sido diferente. Mas ficou alguma coisa ligada à função do príncipe na minha mente. Isso eu sei por lembrar que durante a minha imaginação infantil dos contos meu papel era relacionado ao personagem que fazia a coisa certa na estória: salvar a princesa, salvar o reino, ajudar alguém, matar ou destruir algum mal...
   Não me colocava na posição do príncipe quando imaginava um conto. Eu tinha a preferencia por criar para mim um personagem forte, importante, poderoso, mas que não desempenhava a função de ficar com a mocinha. Claro também que a mocinha quase nunca era a menina que eu gostava. A 'minha' era relegada a um papel condizente com o meu. As vezes eram alguns amigos meus que assumiam a posição do príncipe, terminando a estoria junto com a menina que eu sabia que ele gostava. Meu papel se relegava a ser o abençoador da união do casal magico.
   Isso na tenra infância, ao menos no quanto ainda me lembro dela... Na virada da minha primeira década de vida minha posição nos contos já se alterava: Eu era o centro. O papel principal. A princesa contracenava comigo. Era belo, cheio de aventuras, quase épico. Eu gostava dos heróis que corriam perigo, sempre na frente, no centro da ação. Normal, eu acho. Anormal era que a princesa também deveria estar junto, lutando, correndo perigo, compartilhando meu esforço e dificuldades. Foi o diferencial do meu tempo sendo o príncipe encantado. 
   Esse tempo foi muito curto, graças à intromissão da realidade nos meus contos de fada. Aos doze anos já sabia que, se a princesa tivesse a liberdade de escolher, não me escolheria como seu príncipe encantado. Nunca compus o padrão físico, nem tive o carisma nem a sociabilidade do estereotipo que salva a donzela. Eu chegava, no máximo, a ser o companheiro dele, quando não aquele rival cômico que disputa inutilmente o coração dela e acaba recebendo as risadas da platéia, quando não a pena deles.
   Foi então que tive contato com o anti-herói. Foi o meio de trazer a realidade para dentro da minha imaginação, mesclando as características dos personagens. Nada mais de perfeição. Nada mais de pureza. Não havia mais bem nem mal absolutos. Éramos todos humanos, mesmo que alguns na imaginação não tivessem sequer a forma humana. E desse turbilhão resultaram três coisas:
   Uma era a raiva em relação ao príncipe encantado. No fundo, ele é o personagem bonachão: é tão perfeito que não há como imaginar que ele faça outra coisa na vida além de ser perfeito. E a perfeição é chata, ela cansa a estória. Cansa o leitor. Cansa o autor. Mas continuava salvando a todos e ficando com a princesa no final. Isso irritava. Pior era inventar meios para eliminar seu poder da estória: mata-lo não ajudava, ele virava um mártir, e eu o inimigo publico. Relega-lo a segundo plano era tarefa árdua. Ele, como todo príncipe encantado, sisma em querer seu espaço 'de direito' na estória. Ele quer a fama, ele quer a mocinha. E não importava quantos defeitos eu pusesse sobre ele. 
   A segunda coisa era a princesa. Era a menina dos meus sonhos, meu desejo adolescente, aquela sublime menina que se destacava, aos meus olhos, sobre todas as outras. E se tornava uma vaca. O que mais posso dizer? Ela debandava calmamente para o lado do mocinho. Ia feliz nos braços do príncipe salvador, másculo, sorriso colgate, enquanto o magricela aqui, aparelho nos dentes, espinha na cara, cabelo desarrumado, observava, com o coração partido e lágrimas de raiva.
   O terceiro foi a solução: Havia o príncipe, havia a princesa. Havia a necessidade de criar o anti-herói. Eis o momento em que surge O Bárbaro. Um pouco nobre, um pouco monstro, um pouco bom, um pouco alegre. Muito agressivo, com uma força contida mais na vontade do que nos músculos, mais na quantidade  de amigos que na destreza individual. O príncipe vinha em seu cavalo vestindo sua armadura brilhante? Nada que não pudesse ser resolvido com um machado de mão e meia. A princesa só tinha olhos para o seu encantado? Mais fácil ainda para rapta-la. E os bárbaros, em uma horda insuportável, tomaram de assalto meus mundos de fantasia, queimando o que me machucava e reinando sobre o que eu conquistava.
  Assumi assim a personalidade do bárbaro nos meus relacionamentos românticos. Afinal, o grande favor que os contos de fada prestam à humanidade é cultivar esse romantismo - nem sempre útil - nas nossas mentes infantis para que ao crescer incorporemos algo deles a nossa vida amorosa (ou não... mas não é tema pra agora). Declarei guerra aos príncipes e princesas que fossem aparecer na minha vida. 
   Não incorporei o mero bárbaro apenas. O chefe bárbaro. O rei bárbaro. Se um príncipe encantado é um nobre, um ser importante, não me bastava ser um mero membro da horda. Havia outro fator, que eu detestava ver em muitos dos príncipes e princesas que encontrei: ser príncipe era fácil, simples, fútil. Indica que há alguém maior, um rei - o pai, a mãe, o séquito de amigos bajuladores - trabalhando para manter a corte no palácio com o luxo necessário e protegendo os herdeiros enquanto estes se davam a suas aventuras. Eu queria ralar, mesmo quando não precisava. Enfrentava sozinho meus monstros, minhas dificuldades, ou pelo menos tentava. Eu partia da ideia de que, enquanto o príncipe encantado herda sem muitas dificuldades o reino do rei anterior, eu teria o meu conquistando-o. Era também um meio de me desvalorizar, de evitar chamar a atenção ao máximo, de só ter por perto aqueles que vissem em mim um valor real, não o especulado. 
   Quanto às princesas, elas são o que são enquanto estão no palácio, no castelo, na corte de seus pais. Ao sair de lá, eu achava que a maioria não seria capaz (ou mesmo recusaria) o papel de rainha. Reis e rainhas sujam as mãos. Eles trabalham, sentem o peso de decidir questões da vida. Conheci 'princesas' que preferiam jamais ter de fazer isso: assumir os riscos da própria vida. Essas me deixavam, graças a Deus, à distâncias seguras. Eu dizia para mim ou quem quisesse ouvir que o que eu precisava era de uma rainha, não de uma princesa, e me recusava a aceitar uma garota que quisesse ser tratada como uma.
   O tempo, entretanto, obriga a gente a repensar algumas coisas, alguns pressupostos que temos. A solidão também, age de modo a mudar alguns pontos de vista... e mudei um pouco a relação com a ideia de princesa. Umas se enquadram no estereotipo acima detalhado com uma triste perfeição. Algumas, pelo contrario, saem dele: elas fazem a transição de princesas a rainhas. Essas atraem a atenção, crescem e aparecem melhor que as princesinhas. Elas conseguem minha atenção. Mas ainda desejam que eu as trate como as princesas que foram.
   E eu tive que dar um pouco o braço a torcer. Algumas merecem ser tratadas, por vezes, como princesas. Não pelos que estão a sua volta, nem pra que seus príncipes encantados as vejam, mas por aquele que realmente se importa com ela, e que as valorizam pelo que fazem. E no fundo princesas são aquilo que tanto bárbaros quanto príncipes desejam: uma bela mulher à espera deles no palácio, querendo seu homem a seu dispor. E elas, como rainhas, sabem que não podem mais ser princesas por todo o tempo. 

J2ML