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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Conversa com um demonio:

Às vezes eu me arrependo de ter aprendido este truque. Mas tem momentos em que ele vem a calhar...como agora. Eu preparei o espaço e o chamei. Por que faço isso eu não sei. Nunca soube. Acho que é pela simples graça de chama-lo, e de brincar com essas coisas...

E ele vem, um tempo depois de chama-lo. Eu rio. Ele seria a criatura mais bela desta terra, se eu não soubesse o que na verdade ele é... E ele vem sempre com a mesma cara: o sorriso malicioso, os olhos provocantes, a boca entreaberta, cabelos soltos, sedosos e brilhantes.

Já não me engana faz muito, muito tempo...

E já chega soltando com sua voz suave:
- Andou sentindo minha falta, foi? - É uma voz bela, encantadora...Agora.
Paro de rir, mas respondo ainda com o sorriso nos labios:
- Nem um pouco, sua monstrinha... Embora você seja inigualável.
Ela arregaça o sorriso. O tipo dela adora ouvir um elogio:
- Tem tentado me substituir e não consegue, é? Eu avisei que era a melhor...
Eu quebro logo o barato dela, senão ela se apossa da situação:
- Ninguém finge melhor do que você. Mas tudo que você me dava pode ser melhor sem você... - Eu a encarei, brevemente, olho a olho. Não se pode fazer isso muitas vezes com seres do tipo dele.
E some da face dela o sorriso. Ela sentiu que eu estava diferente das outras vezes. Mas não temeu. O tipo dela não teme gente como nós, a não ser em certos momentos...
- Então porque me quis aqui?
Ela quer ir direto ao assunto? Então finalmente consegui colocá-la numa situação desconfortavel?
Engano - ou simples jogada dela - pois ela decifrou minha cara de surpresa:
- Quer matar a saudade dos nossos velhos tempos? Não resiste ao seu próprio desejo e resolveu pedir minha ajuda novamente?
Oh, cara. Por que esses bichos vivem de passado? Esqueci e já me lembrei: Eu sei o porque. Mas deixarei pra depois...
- Nem pensar. Te chamei aqui para termos uma despedida decente.
Ela reagiu com uma risada sarcastica...
- E você acha que vai se ver livre de mim assim tão facil, querido? - Reação mais que esperada.
- Tenho certeza. Dessa vez me deram a certeza de que você não conseguiria mais...
Ela cortou com a voz agora levemente rasgada.
- Quem podia mentir pra você a ponto de te fazer acreditar na besteira de se livrar de mim? Sua espécie é dependente da emoção, queridinho, e não será facil assim você se livrar de mim, com uma simples decisão...
A situação estava saindo do controle dela. Seria risivel se eu não estivesse na reta dela. Com o tipo dele não se ri. Se joga sério ou se perde para toda a eternidade.
- Quem você acha que me garantiria isto? - Eu provoquei com firmeza. E fiz pela segunda vez algo que quando fiz na primeira vez me assustou, mas que dessa vez não teve o mesmo efeito: Olhei fundo nos olhos dela, a ponto de ver a escuridão que se escondia atrás daquela pupila.

Dessa vez, eu tinha Alguém comigo.

Eu o vi assustado pela primeira vez. Ela recuou, com raiva:
- Acha que vai se ver livre de mim tão facil assim? - Ela veio pra cima de mim, colando seu rosto ao meu. - Não pense que pode isso, seu fracote. Sua raça já nasce no erro. Continuar conosco é sua opção natural.
Eu podia sentir o seu perfume, o bafo da sua boca. De longe o cheiro é inebriante. De perto, é intoxicante. Eu precisava de espaço, mas ela continuou:
- Depois de tanto tempo, de tanta coisa, como você acha que aguentará sem mim? Te garanto que Ele não te oferece nada demais... Além disso, você já foi muito longe comigo. Toda vez que olhar para trás você vai ver que estive contigo em todos os momentos da sua vida. Acha que pode me deixar assim, sem mais problemas?!

Eu não pude deixar de escapar uma risada...

-Esse é o problema de vocês. Vivem de passado. Vivem da nossa culpa, do nosso erro. Vivem do passado porque vocês não podem suportar o futuro... Um futuro em que vocês já estão vencidos.

A voz sumiu. A bela forma, por um breve instante também...Mas o tipo dela raramente perde a compostura, a pose. Ela/ele grunhiu:
- Não se engane tão facilmente, seu pecadorzinho arrogante. Hoje você se acha banhado na confiança DEle. Mas espere um dia de fraqueza, e nós estaremos pelos cantos, pelos espaços escuros, pela sombra...e voltaremos a nos ver. Aí será pior para você, pois vou te fazer rastejar de modo pior ao que você pretende me fazer agora!

Minha cara era de felicidade. Estavam ganhando por mim. Mas dos meus olhos brotaram lágrimas. Estava arrependido por ter conhecido aquilo, por ter estado com ele/ela tanto tempo...

Ele/ela entendeu as lagrimas. E sabia que estava derrotado. E eu aproveitei:
- Essa é realmente a sua raça: a que rasteja nas sombras, que vive de emboscadas, que se alimenta dos fracos...Mas sinto em te dizer: nós terminamos. Eu agora prefiro andar na luz, e não mais em noites eternas.
Fiz a cara mais amavel que pude, sem sequer entender o por que de a estar fazendo, e disse:
- Adeus...
Pensei que ela/ele não conseguiria suportar, mas ele manteve a pose. Se ajeitou, e antes de sair me disse:
- Você não sabe o dia de amanhã...
Cortei de novo:
- Não sei, mas estou do lado de quem sabe agora.
Ele/ela me deu as costas e saiu lentamente, deixando para trás o cheiro caracteristico de toda a sua especie...


J2ML

Mais um texto velho, de 2006.




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